segunda-feira, 18 de julho de 2011

Histórias de bola sem creme mas com açúcar

Pelé
Eusébio foi um dos melhores do mundo, mas sabia que jogou no México? E que Pelé marcou um golo tão belo que lhe fizeram uma placa por não haver imagens de televisão? Histórias da bola, quase meio milhar, em dois livros escritos por dois fanáticos do desporto mais popular do mundo.

Contar uma história por noite às crianças ao deitar é um hábito antigo. Agora, para os mais fanáticos do futebol existe um livro, escrito pelo jornalista Rui Miguel Tovar, 366 Histórias de Futebol, edição Livrododia, com uma historieta por cada dia do ano (falamos de um ano bissexto), ou seja, mais de três centenas e meia de contos sobre o desporto mais popular do mundo. Se for ainda mais fanático por bola, outro jornalista, João Almeida Moreira, fez umas contas por si e escolheu Os 100 Melhores Futebolistas de Todos os Tempos, editado pela Oficina do Livro. Parece arrojado, tanto um projecto como o outro, mas se gosta mesmo de dar uns pontapés na bola e quiser impressionar os amigos, estes dois livros podem ajudar.

Onde é que estava no 25 de Abril de... 1965? E no 11 de Setembro de 1975? Ou no 10 de Junho de 1944? Se calhar ainda não existia ou estava distraído, mas sabe o que aconteceu no mundo do futebol? A estas perguntas e a mais 363 responde Tovar. Que para não parecer fácil - e no final do livro percebe-se mesmo que não é tarefa ágil -, o jornalista passa por cima dos acontecimentos mais mediáticos (pelo menos para ele, um letrado nestas coisas do pontapé na bola) e no dia 25 de Abril de 1965 escolhe não escolher. E por isso passa ao lado do 5-3 à Coreia do Norte em 1966 ou o 1-0 à RFA em Estugarda-85 ou o 3-2 à Inglaterra no Euro 2000. É preciso talento para ignorar três dos feitos mais memoráveis do futebol português para viajar até Bratislava.

Aí, e nas palavras do autor, "nenhum jogo se compara a este". Qual? Com a Checoslováquia para a qualificação ao Mundial de 1966. O resto é crónica: vitória por 1-0 com golo de Eusébio, "numa jogada individual de 8 segundos desde o meio-campo até à linha de fundo, culminada com um remate impossível". Até parece que (o) estamos a ver. Foi esse jogo que decidiu a entrada de Portugal no Campeonato do Mundo de 66 - o tal dos "Magriços" e do terceiro lugar, a melhor classificação de sempre de uma selecção portuguesa num Mundial. Nessa altura da qualificação, em vez das lágrimas de Eusébio ainda eram só sorrisos. E muita correria.

Mais cansado, passados uns anos - no 11 de Setembro de 1975 - Eusébio continua a fazer história ao tornar-se o primeiro capitão no estrangeiro. Terminada a aventura no Benfica, o "Pantera Negra" decide viajar pelo mundo, primeiro na NASL, a recém-criada liga norte-americana, uma espécie de pré-reforma para os melhores do mundo. E depois, imagine-se, o México.

A ideia foi do chileno Fernando Riera, que treinara Eusébio em duas passagens pelo Benfica (1962-64 e 1966-68). O então técnico do Monterrey insistiu na contratação do português, o que só aconteceu porque o presidente do clube era um homem poderoso que admirava Eusébio desde o Mundial de 1966. Seria o próprio Riera quem ofereceu a braçadeira de capitão ao português no jogo de estreia, ganho (3-1) ao Unión de Curtidores.

Diário futebolístico

Eusébio, sempre ele. Tanto num livro como noutro, ele corre as páginas como corria os campos. No livro de Moreira, sobre os 100 Melhores Futebolistas, lá está ele outra vez. E, não se vá o leitor esquecer dele (tamanha heresia), eis que aparece no centro da capa, com Pelé lá atrás, e com três (tantos, outra heresia?) portugueses - Eusébio, Cristiano Ronaldo e Figo - nas nove fotografias. Aqui as histórias - também para contar às crianças - passam pelas vidas de craques tão sonantes como Maradona, Messi, Platini, Cruyff, Beckenbaeur, mas lá dentro há-as de outros menos conhecidos mas que marcaram igualmente o futebol, como Masopust, Monti, Zizinho, Bozsik ou Bloomer.

Tanto num livro como noutro, o critério da escolha pesou. Se no diário futebolístico parece ser mais fácil ir à procura de um acontecimento para um determinado dia, a abundância de jogadores foi o mais difícil com que o autor se deparou para chegar ao número limite de 100. "Na lista deste livro, pelo menos, há de tudo, como num cozido à portuguesa, em que o apagado nabo e a agressiva farinheira têm um casamento tão feliz", escreve Moreira no prefácio.

Sem querendo ferir susceptibilidade (mas ferindo), apresenta a fechar o livro a lista dos 100 futebolistas "suplentes". Nomes como Pirlo, Rui Costa, Futre, Beckham ou Giggs que não conseguiram entrar na equipa dos "titulares". "Escolher 100 já é muito subjectivo, mas com critérios apertados e investigação consegue-se ter uma base objectiva. Ordená-los de 1 a 100 já seria só subjectividade, seria só brincar e o que se pretendia era que o livro servisse um pouco como manual", conta Moreira ao P2.

Para não tornar a leitura cansativa, como se de um mero ficheiro se tratasse, com os dados biográficos apresentados alfabeticamente, o autor vai piscando o olho a quem lê. Exemplos? A última frase do livro é quase igual à primeira que abre a obra. Os jogadores Milla e Weah, os únicos africanos que aparecem na lista, têm inícios e fins de prosa iguais. "Roger Milla ou George Weah? Qual deles foi o melhor jogador africano de sempre?" Uma pergunta com duas respostas diferentes...

Também há uma ligação entre os biografados: o texto sobre Facchetti segue para o de Figo. "O último acto [de Facchetti] no cargo foi a apresentação de Luís Figo", fecha o capítulo sobre o defesa italiano. De seguida, abre a história do português: "No dia em que chegou ao Inter, apresentado pelo presidente Facchetti, Figo provou que, além de um dos mais dotados, foi um dos mais determinados futebolistas do seu tempo".

Outro exemplo? A primeira palavra sobre o brasileiro Didi é "Cubillas", que o antecede, e a última é "Di Stéfano", que o sucede. Se quiser divertir-se a ir à procura, atire-se à obra de 227 páginas.

Voltando às datas escolhidas por Tovar. Sabe o que se passou no 10 de Junho de 1944? O dia de Portugal, assim celebrado desde o decreto de 12 de Junho de 1910 - em honra de Camões, uma vez que a data é apontada como sendo a da sua morte - foi o escolhido, 34 anos depois da sua criação, para cumprir uma promessa de Salazar. Confuso?

Conta Tovar que, "num exercício de futurismo", o Estado Novo promove a primeira Supertaça. Futurismo porque só mais tarde (anos de 1970) o troféu com este nome passou a significar o jogo que opõe o campeão ao vencedor da Taça. Em 1944, sob o slogan "Salazar promete, Salazar cumpre", serviu para inaugurar o Estádio Nacional, um projecto do engenheiro Duarte Pacheco, influenciado pela construção do Estádio Olímpico de Berlim. Nesse jogo, o campeão Sporting ganhou ao Benfica, vencedor da Taça de Portugal, e levantou a Taça Império. Foi Peyroteo a marcar o primeiro golo no novo estádio, no triunfo por 3-2.

Como diz o autor, depois disto não terá qualquer razão para não conseguir responder a estas perguntas e passar a ser um "verdadeiro catedrático da bola". O objectivo é que passe a ser um "craque da sua rua". "Senão com a bola nos pés", pelo menos com a bola na ponta da língua.

Isto é para o leitor poder ficar a parecer-se um pouco com o autor Rui Miguel Tovar. A vida dele parece um desenho de Mordillo sobre futebol, tudo gira à volta da bola: uma espécie de torre de Babel alcatifada com relva a acabar no topo da montanha com uma baliza. Senão vejamos, conta Tovar que quando se apresentou no jornal Record para o primeiro dia como jornalista, a 1 de Novembro de 1995, foi também o dia de um "cinzento Panathinaikos-FC Porto (0-0) para a Liga dos Campeões".

Ali trabalhou na secção de Futebol Internacional até Janeiro de 2009. Sempre na mesma secção, mas com duas licenças sem vencimento pelo meio para se dedicar aos almanaques do Benfica, da selecção nacional, do Euro 2004 e do Sporting, entre 2003 e 2005 , através da empresa Almanaxi, fundada por si e por um amigo. Agora trabalha no jornal i. No Desporto, claro.

O Rei

Um percurso semelhante teve João Moreira. Os dois jornalistas cruzaram-se inclusive nas redacções do Record e do i. Moreira passou antes pelo Diário de Notícias e PÚBLICO, agora está em São Paulo, onde teve tempo para recolher episódios, pormenores, estatísticas e curiosidades destes cem futebolistas que apresenta no livro.

Corre o dedo pela perfeição de Beckenbauer, do drama de Sindelar, o talento de Cruyff, a perdição de Garrincha, os excessos de Best e os recordes de Di Stéfano.

E declara um vencedor: Pelé, o rei incontestado. "Nasceu em 1940 e nunca vai morrer o jogador que se não tivesse nascido homem teria nascido bola e cujo universo ultrapassa o futebol como o dos Beatles o da música ou o da Coca-Cola o das bebidas!", escreve a abrir o artigo de Edson (em honra a Thomas Edison) Arantes do Nascimento. Terá reparado o leitor que não havia vírgulas na frase, porque há uma justificação: "Tem de ler a frase de seguida porque a grandeza de Pelé não permite paragens ou hesitações, apenas um ponto de exclamação no fim, porque o seu nome foi mais vezes gritado do que falado". Pelé!

Maradona é, segundo o autor, o jogador que mais próximo esteve de Deus. Para seguir na escala da evolução do futebolista e chegar a Messi, produto por excelência da era PlayStation, e Cristiano Ronaldo, talvez o culminar perfeito de várias gerações de futebolistas.

É mais ou menos isto: "Se nos anos 60 ou 70 imaginassem o jogador do futuro, imaginariam alguém tipo Cristiano Ronaldo, uma espécie de super-herói de laboratório". Trepou na escala. Escreve o autor que o jogador português do Real Madrid é "mesomorfo", um corpo esguio mas perfeitamente musculado, o oposto do mito maradoniano, baixo e atarracado; é "inovador", criou uma jogada, os livres boomerang; é "superprofissional", conta que quando era miúdo dava toques na bola com um haltere atado à perna para desenvolver técnica e físico em simultâneo; é "ilimitado", não admite jogar menos de 90 minutos por jogo, ao domingo, à quarta-feira, ao sol ou à chuva; é "imediato" porque está na televisão, na Internet, nas redes sociais, na publicidade, gere a imagem como as estrelas de Hollywood.

Estas são algumas (muitas) histórias que pode contar às crianças, antes de adormecerem; ou num jantar com amigos. E parecer um José Mourinho dos livros.

In: Publico

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